Rosa Bonheur: A personalidade por trás da personalidade

jan 26, 2022

Escondida em uma pequena citação em um manual de direito, encontra-se a história cativante de uma das artistas mais conhecidas do século XIX.

 

Ainda me lembro da primeira vez que ouvi sobre os direitos da personalidade, no primeiro ano de faculdade. O conceito de personalidade inserido dentro do contexto de direito era-me curioso e me parecia estranho que abrangesse desde a identidade ao cadáver, passando por imagem, nome, voz e direitos às criações intelectuais. Hoje, trabalhando com mídia e entretenimento, esses conceitos aparecem com mais frequência e naturalidade, mas, a despeito da habituação ocorrida, pus-me a pensar: quando essa preocupação começou?

Revisitando Os Direitos da Personalidade de Carlos Alberto Bittar, podemos verificar que o Código Civil Austríaco (ou apenas ABGB) já previa, na década de 1810, no § 16, os direitos inatos fundados pela única razão pela qual o homem há de considerar-se pessoa. Contudo, foi na jurisprudência francesa, a partir do caso Rosa Bonheur (1865), que pudemos assistir à consolidação desses direitos, especialmente em se tratando dos direitos às criações intelectuais. No caso em questão, foi reconhecido à pintora o direito de se negar a entregar a obra encomendada, mediante pagamento de indenização por perdas e danos.

A história por trás do caso Rosa Bonheur é tão interessante quanto a personalidade que se entende por ele protegida. Rosa Bonheur havia sido encarregada de fazer uma pintura para M. Pourchet. Contudo, quatro anos depois, ela escreveu uma carta, explicando que lhe faltou inspiração e que, portanto, não lhe entregaria o menor pedaço de tela pintada.

Como consequência, foi processada por quebra de contrato perante o Tribunal de la Sene. Inicialmente, em primeira instância, o Tribunal decidiu que ela havia falhado em cumprir com as obrigações contratuais, devendo entregar o quadro ao seu cliente, com penalidade por dia de atraso. Após apelação, a Quinta Câmara da Cour de Paris entendeu que não estavam diante de um contrato de venda, senão de uma obrigação de fazer. Portanto, a artista era livre para não executar sua obrigação, mas que teria que indenizar o cliente por perdas e danos, conforme adiantado. O caráter moral não é explorado a fundo nessa decisão, tornando-se mais claro em decisões posteriores, mas é evidente o avanço na consolidação dos direitos intelectuais.

Resgates históricos como esse colocam o pesquisador em um espaço de reflexão valoroso e lhe possibilitam algumas coincidências. Uma rápida pesquisa nos buscadores disponíveis nos permite ver que em 2022 foi comemorado o Année Rosa Bonheur, nome dado à comemoração do bicentenário de seu nascimento, cujas atividades se encerram neste mês, janeiro de 2023. Contudo, uma pesquisa mais profunda nos permite notar que este tributo se tratou de uma oportunidade de fazer justiça a uma artista esplêndida e pioneira ante a subestimação enviesada e sexista por parte da sociedade, que a relegou a certo descrédito e esquecimento.

A pintora, cujos direitos de personalidade foram tidos como protegidos, foi provavelmente uma das mais famosas do século XIX. Nascida em 1822, na França, tornou-se mormente conhecida pelas pinturas que retratam animais (cavalos, em especial) com detalhes que se assemelham à fotografia.

BONHEUR, Rosa. “The Horse Fair”. 1852-1855. Pintura, óleo obre tela, 244,5 x 506,7 cm. Metropolitan Museum of Art em Nova Iorque, EUA.

Um feito raro para mulheres de seu tempo, desde os seus 19 anos, Rosa Bonheur exibia suas obras no Salão de Paris. Com seu inegável tino comercial, levou-as a alcançarem preços realmente exorbitantes para o mercado da época, obtendo inclusive reconhecimento internacional. Aliás, foi a primeira mulher a ser agraciada com a Grã-Cruz da Ordem Nacional da Legião de Honra, a mais alta condecoração honorífica da França, em 1865, quando sua relação com o próprio país já não ia muito bem.

Curioso é o fato de que a artista possuía um certificado da polícia que lhe dava permissão para vestir-se como homem em público por questões de saúde. Dentre os verdadeiros motivos, porém, que a levavam a usar o traje pouco convencional à época existia outro: ela se vestia com roupas masculinas para não causar alarde ao frequentar feiras de cavalos e, por razões artísticas, assistir a dissecações em matadouros.

Na verdade, existe a leitura de que a pintora escolheu se adequar a escolas mais conservadoras, para garantir-se viabilidade artística e mercadológica, considerando que sua figura por si só já seria suficientemente vanguardista. Usava calças, fumava charutos e manteve ao longo de sua vida relações afetivas com duas mulheres que tratava como esposas: a primeira, Nathalie Micas, de quem se tornou viúva, e depois a segunda, Anna Klumpke, quem tornou herdeira após sua morte. Tudo isso em pleno século XIX.

O sucesso comercial possibilitou-lhe comprar seu próprio château, bem como receber a condecoração retromencionada, mas não a livrou de críticas de setores vanguardistas em relação ao seu trabalho, por mais contraditório que isso hoje possa parecer. Ainda em vida, foi relegada a certo esquecimento e desatenção pela comunidade artística de seu próprio país, apesar de ter um público fiel na Inglaterra e nos EUA.

Quando, em 1853, expôs no Salão de Paris, a obra Le Marché aux Chevaux (The Horse Fair), obteve projeção internacional. Essa fama fora de seu país se consolidou em 1855, quando fez uma viagem para a Inglaterra e para a Escócia, onde ficou conhecida como “a gloriosa francesa”. Tal fato levou Bonheur a trabalhar mormente para ingleses e estadunidenses admiradores de seu trabalho, deixando de expor no Salão de Paris, o que foi lido por muitos como uma traição à França.

Assim, foi-se construindo um desgaste com a comunidade artística de seu país: sua rebelião e resistência ao mercado francês e o fato de que passou a se dedicar principalmente ao mercado internacional (EUA, Inglaterra, Alemanha e Bélgica) foram muito usados pela crítica especializada da época. Diziam que seu afastamento dos salões era motivado tanto por uma fuga de críticos que lhe teriam sido perversos com ela quanto por um medo de que ficaria à sombra de novos talentos que teriam emergido.  Faziam, inclusive, comparações com seu irmão mais novo, Auguste Bonheur, que ainda expunha nos salões franceses.

No ano de sua morte, em 1899, depois de 44 anos sem se apresentar nos salões franceses, foi proposto que lhe concedessem a Medalha de Honra. Contudo, correu o rumor de que seria apenas para manter o preço alto de suas obras. Indignada com a acusação, escreveu uma carta ao Salão de Paris recusando a medalha, alegando que o quadro que havia enviado para aquele ano não merecia tanto destaque, mesmo que se supusesse que o prêmio se destinasse mais à carreira completa do artista que à obra apresentada. Faleceu no Château de By, longe da comunidade artística da França.

O primeiro centenário foi pouco ou nada comemorado. O naturalismo radical, que Rosa Bonheur havia representado com maestria, havia sido superado pelos trabalhos de vanguarda. Aos olhos da sociedade francesa de 1922, seu trabalho já era desatualizado, e sua figura, tida como extemporânea. Por mais que entre americanos e ingleses continuasse popular, existia um grande rechaço por parte da comunidade artística da França, país que hoje é preocupado em resgatar sua memória e trabalho.

A recuperação de sua figura se deu a partir da obra “El Cid”, no Museu do Prado, na Espanha. A obra, que pode ser apreciada neste link, foi fruto de um trabalho tardio da pintora, que passou a se interessar pela retratação de grandes felinos depois da Guerra Franco-Prussiana (de julho de 1870 a maio de 1871). A guerra lhe teria dado um giro trágico em relação às suas preocupações, o que a fez abandonar o estudo de animais pacíficos e a se ocupar com leões e tigres.

A tela ficou sem ser exibida por aproximadamente um século e meio, até que, em 2017, no contexto de World Pride Madrid, foi resgatada para ser exposta na mostra temporal La mirada del otro. Escenarios para la diferencia. A finalidade era promover resgates artísticos históricos através da diversidade sexual refletida nos fundos da instituição do museu. O êxito da reaparição da obra foi inegável e o público demandou pela restituição da obra à exibição permanente.

Assim sendo, a comemoração do bicentenário de vida de Rosa Bonheur se dá após longo e desmerecido esquecimento, em um cenário de valorização da sua figura pelos movimentos sociais. Resgates como este são necessários e trazem à tona algumas reflexões, desde o apagamento histórico à frieza de um antecedente jurisprudencial. Por essa razão, neste momento em que se encerra o Année Rosa Bonheur, fazem-se proveitosas as discussões sobre as estruturas, inclusive jurídicas, que se arranjam na contemporaneidade e a contemplação do trabalho daquelas e daqueles que ajudaram a construir e a organizar a sociedade em que vivemos.

 

Por: Vinicius Pegorari Ribeiro

 

REFERÊNCIAS:

BERNUÉS SANZ, Juan Ignacio. En el 200 aniversario del nacimiento de Rosa Bonheur: La redención francesa y la recepción de su vida y obra en España. Revista de la Asociación Aragonesa de Críticos de Arte, Zaragoza, Espanha, v. 59, junho de 2022. Disponível em: http://www.aacadigital.com/contenido.php?idarticulo=1987.

BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 7ª ed., rev., atual. e ampl. por Eduardo C. B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

__________________. Os direitos da personalidade. 8ª edição, revista, aumentada e modificada por Eduardo C. B. Bittar, São Paulo, Saraiva, 2015.

BUREAU  INTERNATIONAL  DE  L’UNION  POUR  LA  PROTECTION  DES  OEUVRES  LITTERAIRES  ET  ARTISTIQUES.  Le  Droit  d’Auteur,  41º ano,  nº 1,  15  de  janeiro  de  1928.   Berna,  Suíça:  Imprimerie Coopérative (Expédition du Droit d’Auteur). Disponível em https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/fr/copyright/120/wipo_pub_120_1928_01.pdf.

TEILMANN-LOCK, Stina. British and French Copyright: A Historical Study of Aesthetic Implications. Djoef Publishing, Copenhague, Dinamarca, 2009.

REED, Christopher. Art and Homosexuality: A History of Ideas. 1ª ed. Nova Iorque, EUA: Oxford University Press, 2011.

STRAUSS, William. The Moral Right of The Author, Study No. 4 of Copyright Law Revision, 86th Cong., 1st Sess. 109, 115 (Comm. Print 1960). Disponível em: https://www.copyright.gov/history/studies/study4.pdf.

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