O Iluminado: Um Caso sobre Adaptação Cinematográfica de Direitos Literários

março 02, 2023

Stephen King é um dos autores mais conhecidos e aclamados da literatura contemporânea, com mais de 400 romances e contos adaptados para cinema e televisão, alçando-o ao ranking dos 20 autores literários mais adaptados a conteúdos audiovisuais em todos os tempos.

Em 1977, o “Mestre do Terror” nos brindou com a obra-prima “O Iluminado“, uma das mais conhecidas histórias de terror de todos os tempos que conta a história de Jack Torrance, um escritor em crise que aceita trabalhar como zelador no sinistro Hotel Overlook (por si só um personagem central), isolado nas montanhas do Colorado durante a intransponível temporada de inverno, levando consigo a esposa Wendy e o filho Danny, este o protagonista iluminado do título por conta de seus poderes psíquicos sobrenaturais. O que começa como uma oportunidade para se dedicar à família e ao novo livro, logo se torna uma luta pela sobrevivência quando coisas estranhas começam a acontecer no hotel.

Em 1980, a obra literária foi adaptada para o cinema por Stanley Kubrick, um dos mais conceituados cineastas. No entanto, a adaptação cinematográfica não foi bem recebida pelo próprio King, que criticou diversas mudanças feitas no enredo. O desentendimento entre King e Kubrick se tornou público, com o autor expressando insatisfação quanto ao resultado da adaptação.

Segundo consta, um dos principais pontos de divergência foi o desenvolvimento do personagem Jack Torrance, que no livro é retratado como um homem perturbado que se torna violento devido à influência do hotel. No filme, entretanto, Jack é (magistralmente) interpretado por Jack Nicholson como um homem já instável e com tendências violentas. King também criticou a interpretação de Shelley Duvall como Wendy Torrance, alegando que a personagem foi retratada como “fracassada” e “sem força”.

De fato, Kubrick promoveu alterações fundamentais no enredo original, especialmente em seu final, considerado pelo autor ambíguo e desrespeitoso com a mensagem de seu livro, já que Jack morre congelado, sendo privado da possibilidade de redenção. Parece que até mesmo a escolha por Jack Nicholson foi criticada por Stephen King, que o considerava muito caricato e pouco sutil para o papel.

Por conta dessas divergências, King e Kubrick tiveram vários desentendimentos durante a produção de “O Iluminado“, inclusive o método discutível para extrair de Nicholson e Duvall as performances memoráveis. Especialmente em relação à atriz, há relatos de abusos verbais do diretor, que a submeteu a massacrantes takes até a exaustão para alcançar o desempenho dramático esperado. De se enaltecer, em contraponto, o elogiável tratamento protetivo dispensado ao então ator mirim Danny Lloyd, que sequer sabia estar participando de um filme de terror e foi dirigido pelo Kubrick como se estivesse numa espécie de brincadeira ou gincana.

Kubrick, por sua vez, não se importou com as queixas do autor e seguiu em frente com sua visão particular da história. “O Iluminado” foi um sucesso de bilheteria e crítica, e se tornou um clássico do terror (o melhor filme de terror de todos os tempos em minha modesta opinião). No entanto, a relação entre King e Kubrick nunca foi harmoniosa, para dizer o mínimo com emprego de eufemismo: o autor chegou a dizer que a adaptação de seu livro era “um lindo Cadillac sem motor”.

Curiosamente, Stephen King produziu, em 1997, a minissérie “O Iluminado”, com 3 episódios de aproximadamente 90 minutos cada, cujo desenvolvimento e trama é fiel à narrativa do livro. De se imaginar que King, enfim, conseguiu entregar a adaptação audiovisual pretendida.

Anos depois, em 2013, King publicou “Dr. Sono“, uma continuação de “O Iluminado” que seguia a história do personagem Danny Torrance, agora adulto e lutando contra seus próprios demônios. A obra foi bem recebida pelos fãs e pela crítica, e naturalmente gerou interesse em uma adaptação cinematográfica.

Desta vez, King teve mais controle sobre o processo criativo e até sobre aspectos da produção. Ele mesmo escreveu o roteiro e escolheu Mike Flanagan como diretor, um cineasta que já havia adaptado com sucesso outra obra sua, “Jogo Perigoso“. King também se envolveu na escolha do elenco, e aprovou a escalação de Ewan McGregor como Danny Torrance.

As negociações para viabilizar a produção de “Dr. Sono” tiveram de superar as exigências de King quanto à equipe do filme e sua inicial desconfiança quanto ao respeito à sua visão criativa. Por isso, o próprio Flanagan classificou seu desafio criativo como “aterrador” e o processo de convencimento de Stephen King como “o momento mais angustiante” de sua carreira.

O resultado foi um filme que, embora não tenha sido tão aclamado quanto o original, foi bem recebido pelos fãs e teve uma performance satisfatória nas bilheterias. Além disso, a sequência “conversa” muito bem tanto com o livro quanto com o filme. Palmas para Mike Flanagan que conseguiu conciliar o que parecia inconciliável: as visões divergentes de dois gigantes criativos sobre “O Iluminado”. E ponto para King que, nas palavras de Flanagan, “ignorou ativa e intencionalmente tudo que Kubrick havia mudado” – até mesmo a morte de alguns personagens no filme.

Neste icônico caso brevemente narrado, parece claro que o vencedor dessa “briga” é um só: nós, o público, que contamos com a visão original de Stephen King para sua “cria” e a brilhante releitura cinematográfica de Stanley Kubrick.

O caso de “O Iluminado” e “Dr. Sono” levanta questões importantes sobre os direitos literários e a relação entre o autor e os cineastas, mas principalmente sobre a forma de negociação dos direitos literários. Obviamente, o autor apegado à sua obra não quererá ceder o controle criativo, enquanto a equipe criativa da obra audiovisual não desejará renunciar às decisões artísticas quanto ao conteúdo, o que eleva a importância estratégica do legal business affairs como agente viabilizador do negócio, agindo até criativamente para, com elevada técnica contratual, superar obstáculos.

 Leandro Armani

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